o Ceni caiu. O que muitos desacreditavam, principalmente por ser talvez
o maior ídolo da história do São Paulo Futebol Clube, aconteceu. Mais um que
vira estatística na cultura do futebol brasileiro que tritura um treinador
atrás do outro. Mas foi correto demitir o ex-goleiro? Onde estão os erros dele?
O que não funcionou em seu modelo de jogo? Só ele errou nestes seis meses de
trabalho? Como detectar o que existe de certo e errado dentro de um ambiente
tão complexo de se analisar?
Pois bem. É fato que, no Brasil, estamos acostumados a sempre escolher
um vilão para cada tragédia que vivemos. Treinador, presidente, diretor,
zagueiro que falha... Tem até gente nadando contra toda essa maré que acaba
entrando no balaio por ignorância de quem passa informação e cria opinião. Mas
chegaremos neste ponto lá na frente.
Olhar para o São Paulo hoje e tentar apontar um culpado ou mesmo um só
problema dentro de tudo que se enxerga dentro de campo é praticamente
impossível. Falaremos dos últimos seis meses, mas é fato que o Tricolor, que
desde sua última conquista (Sul-Americana 2012) teve nada mais nada menos que
11 treinadores, tem vilões de todas cores, formas e estilos para escolhermos.
Enquanto não enxergamos o futebol como algo sistêmico, com vários aspectos
interligados, vamos continuar tratando apenas os sintomas, e não a doença.
Aliás, reflexão válida para outras esferas da nossa vida.
Então vamos separar a trajetória do ex-capitão são-paulino como
treinador em alguns tópicos. Tentar entender os objetivos, os erros, as
questões de campo e fora dele. Olhar de uma forma mais abrangente, explorando
questões táticas, ambiente, escolhas no modelo de jogo, planejamento, resultado
x desempenho... Vamos nessa:
Início:
a escolha do modelo de jogo como fator decisivo
Ao assumir a equipe, Rogério Ceni garantia, desde suas primeiras
entrevistas, que o objetivo era construir um modelo de jogo ofensivo e de muita
agressividade. Que gostaria de ter um time que jogasse no campo do adversário,
com muita pressão na bola e passes rápidos para desequilibrar as defesas
adversárias. No geral, ideias complexas para se colocar em prática com menos de
um mês de pré-temporada. No fim, foram escolhas determinantes para o seu futuro.
Definições que, de certa forma, o levaram até a demissão. Talvez
muita informação ao mesmo tempo. Não ter ensinado primeiro o
"A-E-I-O-U" para, só depois, tentar separar as sílabas.
Com o calendário brasileiro tão congestionado, escolher e trabalhar uma
forma de jogar na pré-temporada se torna cada vez mais importante. Com o ritmo
de quarta e domingo, pouco se treina. O dia a dia acaba servindo para
"lembrar" situações já treinadas e ajustar ideias. Olhe para a Europa
e veja a relevância que os profissionais dão a este longo período de
treinamentos. É nele que os pilares de um modelo de jogo são construídos,
visando uma estrutura forte que suporte toda a temporada.
Ciente da sua inexperiência, sobretudo com treinamentos, Rogério trouxe
Michel Beale. O auxiliar-técnico inglês, com passagens por Chelsea e Liverpool,
chegava para ser um suporte ideológico na criação de uma identidade para a
equipe. Ceni viu no contratado alguém que pudesse o ajudar na construção dos
treinamentos e exercícios que estimulassem seus atletas a jogar dentro de um
modelo totalmente novo, até mesmo no âmbito nacional.
Empolgado com a chance de ser ídolo também fora das quatro linhas,
estreitou sua relação com as categorias de base, estudou equipes que praticavam
um futebol parecido com o que buscava, se aproximou da Análise de
Desempenho para dissecar adversários, buscar exemplos de jogadas, vídeos
referenciais, ideias novas... Enfim, tudo que poderia ser feito para iniciar
bem o novo desafio. Por conta disso, trazia consigo grandes expectativas.
Apesar de ter treinado formações com três zagueiros durante os amistosos
pela Flórida Cup, até por conta do passado recente são-paulino e a tendência
europeia neste sentido, escolheu o 4-3-3 como a plataforma base para o São
Paulo. As variações eram mínimas, geralmente para o 4-2-3-1. A questão mais
importante, no entanto, era o modelo e também o fato de optar por uma linha
defensiva com quatro jogadores, algo que mudaria em certo momento da temporada.
Rodrigo Caio, volante nos primeiros dias de trabalho, pediu para voltar a zaga.
Com João Schmidt de malas prontas para a Europa, achou (e acertou) com Jucilei.
Problema resolvido.
Em seu momento ofensivo, o Tricolor atuava com seus zagueiros bem
adiantados, compactando a equipe para sufocar o oponente em seu campo. Juntos
do primeiro volante, faziam o balanço defensivo e ajudavam na organização
ofensiva. Saiam com passes mais agudos, quebrando linhas e buscando apoios
verticais. Seus laterais, abertos rentes à linha lateral, geravam amplitude (abrindo
o campo) e em alguns momentos até profundidade. Com isso, o treinador
são-paulino centralizava seus pontas para gerar superioridade numérica por
dentro e trabalhar o jogo curto com velocidade.
Mas a grande identidade da equipe nos primeiros jogos era a pressão
pós-perda da bola. Era um time que, ao perder a posse, atacava a bola com muita
agressividade. Rogério cobrava isso incansavelmente. O São Paulo praticamente
não entrava em fase defensiva, muito por trabalhar nessas transições mais
agressivas, retomando a bola rapidamente e, de novo, acelerando o jogo próximo
do último terço do campo. E foram nessas transições defensivas que os primeiros
erros começaram a aparecer.
A perda da intensidade, principalmente no segundo tempo, fazia do São
Paulo um time que fazia muitos gols, mas que também sofria muitos. As
transições defensivas, desorganizadas e por vezes "preguiçosas" por
parte de alguns atletas, começavam a virar o tendão de Aquiles para Ceni. Se
buscava uma pressão mais adiantada, mas, quando essa bola saía da pressão, via
sua equipe dando campo e espaços para os adversários atacarem. No geral, o
desempenho no mínimo satisfatório (veja no vídeo abaixo uma linha
do tempo tática do São Paulo de Rogério Ceni).
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5:45
DataESPN:
Em 3 etapas, Calçade analisa os 6 meses de trabalho de Rogério Ceni no São
Paulo
Meio:
os problemas estruturais e o questionamento das convicções
Até então novidade, o São Paulo de Rogério Ceni passou a ser melhor
compreendido por seus adversários. Os espaços para se acelerar o jogo no terço
ofensivo, antes mais frequentes, foram desaparecendo. Os rivais passaram a dar
a bola para o Tricolor. Equipes mais organizadas e com estilo reativo,
apostando em contra-ataques e em bolas paradas, principalmente, começaram a se
dar melhor nos confrontos. Mais posse de bola, mais volume ofensivo, mais
escanteios, cruzamentos, finalizações... As estatísticas frias, que pouco
explicam o futebol, jogavam ao lado do treinador. Por outro lado, os resultados
não vinham, mesmo que com bom desempenho em alguns jogos.
As transições defensivas eram cada vez mais desastrosas. Cícero, por
exemplo, mostrava grande dificuldade neste retorno. Não tinha forças para
colocar pressão na bola e muito menos se colocar atrás da linha dela rapidamente.
Se por um lado a sua característica de construção, do passe e da circulação da
bola, era importante, suas atribuições defensivas eram cada vez menos eficazes
dentro do contexto coletivo da equipe. Com o coletivo cada vez mais
enfraquecido, começou um festival de falhas individuais, Lucão, Rodrigo Caio,
Douglas, Maicon... Quase que uma por rodada.
Não pressionar o portador da bola continuava a ser um problema. A
intensidade sem bola, importantíssima nos movimentos de perde e pressiona,
continuava caindo. De um modo geral, faltava ao São Paulo aprender a alternar
ritmo durante os jogos. O São Paulo era uma equipe que, basicamente, acelerava,
perdia e pressionava, e acelerava novamente. Alternar ritmo nada mais é que
intercalar momentos de maior pressão e intensidade, com um jogo mais
posicional. É tentar recuperar a posse e não acelerar a todo instante,
cadenciar também, "descansar" com a bola. Manter a agressividade do
modo que Ceni queria durante 90 minutos é impossível. Ninguém no mundo consegue.
E poucos têm o calendário tão desgastante quanto o nosso. A primeira convicção
de Rogério Ceni começava a ser quebrada.
Outra questão muito importante que enguiçava a fluência do modelo de
jogo são-paulino era o trabalho dos pontas. Ficava cada vez mais claro que,
tirando Marcinho, as opções no elenco não conseguiam fazer esse trabalho mais
curto por dentro, com toques rápidos e com grande velocidade de execução,
principalmente por se tratar de uma zona muito pressionada no campo. A queda de
desempenho de Cueva também era sentida, já que se trata do jogador com mais
recurso técnico para tal função.
Ao mesmo tempo os contra-ataques adversários castigavam o São Paulo. As
bolas paradas defensivas também chegaram a ser problema durante um período. Com
tudo isso, a confiança e a força mental dos atletas iam ladeira abaixo. Fez da
equipe de Rogério Ceni um time incapaz de reagir à situações desfavoráveis. Era
cada vez mais nítido o abatimento com gols tomados. Foram várias os momentos de
bom desempenho, gol sofrido e apagão geral. O time simplesmente parava de
jogar. Resultado: duas eliminações em poucos dias. Paulistão, para o rival
Corinthians, e Copa do Brasil, para o Cruzeiro.